O problema de segurança pública adquiriu essa importância, esse nível de gravidade, com a ditadura. Antigamente, uma pessoa podia andar tranqüilamente na rua, praticamente o assalto não existia. Assalto a banco? Isso não existia aqui! Realmente isso era assunto de cinema. As senhoras andavam nas ruas, lá no centro, com as suas bolsas. Havia naquele tempo os chamados punguistas: era os batedores de carteira, eram os passadores do conto do pacote, do conto do vigário, enfim, eram atividades até ingênuas, que eram motivo de crônicas, que todo mundo até apreciava naquele tempo.
Não existia esse clima de violência, de assassinatos, de homicídios. Isso veio com a ditadura. E coincidiu com o agravamento da situação social. E com o empobrecimento da população, com a decadência do sistema educacional. E com a explosão demográfica, que foi agravando, multiplicando esta ordem de problemas.
Receita por receita, os militares tentaram tratar isso com violência, enfrentando de uma forma primária o assunto, até com helicópteros sobre as favelas, sobre as áreas carentes... Agora andam falando em pena de morte, que já existe aqui, como em nenhum outro país!
O Brasil é campeão na utilização da pena de morte, com a quantidade de assassinatos que estão ocorrendo. E o problema se agravando, a situação cada vez pior! Então, vejam, essas duas questões correm paralelas, como grandes males nacionais, como situações absolutamente intoleráveis que condenam, estão estiolando a vida brasileira. Principalmente nas grandes cidades.
Veja o Rio, como tem sido prejudicado por isso. Então essa questão não pode ser realmente analisada como até agora, desconhecendo certos aspectos que estão em águas mais profundas. Acho que a questão educacional é conseqüência de uma cumplicidade das elites brasileiras, que querem o povo brasileiro ignorante. E reagem até contra um programa como esse dos CIEPs. Há gente que tem esse fundo cultural, que não aceita que as crianças, as crianças da nossa pobreza, de nossas populações negras, tenham escola de nível de classe média como tem os filhos deles! Não aceitam.
A floresta de Samora Machel
Quando estive em Moçambique, isso me serviu para entender muito o problema. Samora Machel, que era um ser humano admirável, me disse: "Olha, Brizola, aqui estamos utilizando o idioma do colonizador para fazer a nossa unidade e para nos conhecermos! Como um instrumento de reconhecimento mútuo. Porque são muitos idiomas, dos diversos grupos populacionais que possuímos. Mas, veja, nós agora estamos universalizando isto; mas antes, o colonizador usou, durante séculos, o seu idioma para nos colonizar".
Eles só ensinavam português para uma pequena camada que trabalhava com eles: os empregados domésticos, os motoristas, os carregadores, os serviçais de maneira geral, os trabalhadores que formavam a base da economia e da sociedade colonial que existiu lá até 1975, ano da independência de Moçambique. O idioma português era ensinado restritamente pelo colonizador aos moçambicanos que prestariam serviços a ele. Quanto ao resto da população, os colonizadores nem sabiam quantos eram. Nem queriam saber quantos moçambicanos viviam por lá, pelos matos, pela floresta. Eles eram chamados de "indígenas", não tinham documentos, não andavam nas cidades, e pronto, ninguém se preocupava em sabe se estava doentes, com fome, quantas crianças nasciam, quantas morriam, nada! Viviam à parte da sociedade colon ial, ninguém sabia se matavam algum elefante para comer, para se salvar ou não, quantos viviam nas florestas, pelos matos! Os colonos brancos não tomavam conhecimento. Este é o perfil do próprio colonialismo.
Vejam agora a questão no Rio de Janeiro. Existem aqui duas sociedades: tem uma que é a nossa, onde circulamos, conhecemos pessoas. Estamos aqui nos controlando, conhecemos fulano, beltrano, filho de sicrano, temos carteira de identidade, etc. E se uma pessoa falta, damos falta dela. Se essa pessoa é vítima da violência, todos nós sabemos e ficamos revoltados.
Descendo na escala social, nos deparamos com um outro mundo, subterrâneo, parecido com a floresta descrita por Samora Machel. Lá ninguém sabe quantos matam, quantos morrem, quem manda matar, quem faz o quê. Uma sociedade civilizada que se preze pode conviver com 20, 30, 40 assassinatos diários? Jovens mortos com balas de guerra, muitas vezes pelas costas, e ninguém nem sabe de nada? As notícias sensacionalistas sequer citam nomes e os corpos são jogados em valas ou lixeiras, enquanto famílias não reclamam, temendo os executores. O que é isto, quem mata? Quem morre? Esta é a vida da floresta do Samora Machel?
Aqui, geralmente, tudo se resolve com a explicação: "Ah, isto é disputa por ponto de droga, o traficante tal contra fulano". O problema é que esta explicação resiste à lógica mais elementar. Que diabo de cidade é essa que se impregnou dessa forma? Qual é o lugar do mundo onde se mata dessa maneira? Existe tanto tráfico, tanta gente assim envolvida com banditismo? Podemos aceitar isso para um país como o nosso? Devemos conviver com a floresta de Samora Machel?
Francamente, acho que temos que ir em águas mais profundas. E os vícios? Nó estamos acostumados com os vícios dos próprios serviços de segurança. Num quadro desses, até os bons policiais estão sendo mortos. Isso precisa ser drasticamente saneado! Olhem, não sei de onde sai tanta arma, não sei que tráfico é este, mas sei que procuram criar a idéia de que as favelas são um ambiente de vício! (14-05-91)
As elites fizeram os guetos
Aí está uma questão importante para os amigos repórteres internacionais. Isto que podíamos considerar uma espécie de cultura praticada pelas classes dirigentes de nosso país, levou as favelas, as comunidades pobres, a serem consideradas guetos origem de todos os males. O fato justifica todas as tropelias, todas as demonstrações de força do aparelho policial nas favelas.
Essas ocorrências, conforme a época, têm uma explicação. Agora estamos na fase da droga, do tráfico. Claro que o problema existe, não só a droga, como o tráfico, como a utilização das favelas e até de crianças, nessas atividades criminosas. Mas procuram aproveitar-se dessas ocorrências, exagerando-as, criando iniciativas para demonstração de poder. Para punir e intimidar as pessoas que vivem uma situação que, sob muitos aspectos, é intolerável e dá a elas até o direito de reivindicar.
Eu me criei em bairros pobres, onde as pessoas eram boas, viviam se visitando, conversando, solidárias, ninguém pensava em fazer violência. Eu me criei de pé no chão, como essas crianças que estão aí. Até tenho o pé grande demais porque me criei com o pé à vontade, pisando. O meu dedão é aberto, como de todas as crianças que se criam de pé no chão. Será que mudou tudo isto?! Ou estão mudando tudo isto? Estão oprimindo essas populações? Como é isto? Será que não estamos aqui envoltos por um véu, por um nevoeiro de obscurantismo e não estamos nos dando conta do que está acontecendo? (30-06-93).
Natureza juvenil dos crimes
Na minha opinião, pelo menos 80% da criminalidade existente no Rio de Janeiro são de natureza juvenil. Isso não quer dizer que adultos de 18, 20 ou 22 anos estejam excluídos da estatística. Muitos deles fazem parte de quadrilhas, assaltando residências, assaltando bancos e praticando crimes. Mas esta camada, especificamente, é a camada do Moreira (Moreira Franco, governador que sucedeu a Brizola, em 1983): eram crianças e muitos estudavam em CIEPs que foram fechados, abandonados. Essas crianças e muitos estudavam em CIEPs que foram fechados, abandonados. Essas crianças todas saíram e quem sabe quantas delas estão por aí, perdidas na bandidagem.
O quadro que existe é de violência juvenil, de criminalidade juvenil. As crianças partem da periferia para o centro porque lá há uma população imensa e a situação difícil as empurra para cá. Elas não param de vir e acabam passando pelo meio de nossas pernas, tantas são. Não é arrastão, um garoto desses ataca um chefe de família qualquer, rouba uma bolsa de mulher, o problema é rotineiro. E se tiver por ali um pedaço de madeira, um porrete qualquer, chefe de família vai dar na cabeça da criança?
É uma situação terrível e não tenhamos esperanças de que o problema um dia diminua. Ele não vai diminuir, só vai crescer. Vai aumentar porque é cada vez maior o número de crianças vindas da periferia. A única saída é criarmos colégios tipo CIEPs que atraiam, que absorvam, que eduquem essas crianças. Fazer o que os povos dignos fazem: proteger as crianças, colocando-as em escolas dignas, não permitindo que elas andem pelas ruas.
Na França, criança não pode ficar na rua
Na França, nos dias de semana, criança em idade escolar é proibida de andar nas ruas. Se andar, o juiz pega e quer logo saber: por que está na rua? "Não, eu não fui ao colégio." E ele, de imediato, encaminha a criança para o pai ou a mãe, ou direto para o colégio. E se a criança não está matriculada em escola alguma, ele providencia para que isso seja feito.
Aconteceu isso com o José Maria Rabello, nosso companheiro, no exílio na França. Recém tinha chegado com os filhos, quando um deles foi pego pela polícia e encaminhado ao juiz, que o convocou. Lá, soube que na França, criança em idade escolar, não pode andar solta pelas ruas. O mesmo acontece na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Agora, aqui não! É isso que vemos. Porque na periferia onde vivem, não há escola, não há nada. Outro dia, uma pessoa me construiu o seguinte quadro, que na verdade dá idéia aproximada do que está acontecendo: vamos admitir que estejamos vivendo numa grande cidade que, ao lado, tem uma área úmida, com bastante água parada. E ali se criam muitos mosquitos. A cidade está aqui, os mosquitos estão lá. De repente começa a ventar de lá para cá. Um vento cada vez mais forte, que progressivamente vai inundando a cidade de mosquitos.
As pessoas então começam a se defender dos mosquitos com uma reação primária, até irracional. Usando aquelas bombinhas de flits. Lembram, aquelas manuais? Tchii, tchii, tchii... Só que não conseguem vencer os mosquitos. E aí resolvem apelar para os sprays, mais modernos, mas só podem usá-los dentro de casa. Como combater aquela quantidade de mosquitos lá fora com spray? Aí a única saída é as pessoas passarem a viver confinadas, dentro de suas casas, para se defenderem dos mosquitos.
Isto dá uma idéia da periferia das grandes cidades brasileiras onde nascem tantas crianças. E essas crianças precisam ter um destino digno. Se nasceram, foram produto do amor. Por que não dar a elas um destino digno? Como é que um país como o nosso pode gastar 38 milhões de dólares para o Sr. Roberto Marinho construir um estúdio fantástico de televisão e, ao mesmo tempo, deixar as crianças permanecerem no pântano?
É por isso que elas estão vindo em nossa direção, em número cada vez maior. E sabem quem, na vida real, faz o papel de vento? A televisão. O vento é a televisão. Estamos praticando um haraquiri social, um suicídio coletivo. (05-05-92)
Pior do que o apartheid
Olhem, quando esteve aqui o Nelson Mandela, esta personalidade admirável, falei com ele: "Sr. Mandela, me diga uma coisa, o senhor poderia me dizer se lá na África do Sul, onde está o apartheid, onde está a mais horrenda repressão contra os humildes, contra os pobres em nome do racismo, inadmissível, me diga uma coisa: quando matam, como é que fazem? As famílias recebem os corpos? Há velório? Há enterro cristão para esses mortos? As pessoas sabem os nomes dos mortos?"
Ele me disse: "Sim, senhor". Insisti: "As pessoas sabem dizer que o morto é o fulano, filho da dona fulana que mora ali?" Ele confirmou: "Sim, senhor". Acrescentei: "Então vocês identificam todos os que matam?" Também confirmou isso: "Sim, senhor, até fazemos protestos: esses enterros, esses velórios são todos momentos de protesto, de luta para nós". Aí quem ficou curioso foi ele: "Mas por que me pergunta isso?" Tive que responder" "É por aqui matam-se aos milhares, todos rapazes, jovens, escurinhos, miscigenados, ou negros, e as famílias sabem que mataram, não são identificados, não têm enterro cristão compatível". Ele ficou surpreso: "Mas é verdade?". Chamou um secretário para tomar nota. Eu, por minha parte, pedi para chamarem o senado Abdias do Nascimento, um líder brasileiro das popul ações negras, e pedi que confirmasse o que dizia.
Então digo o seguinte: nós íamos nos conformando porque líamos todos os dias isto nos jornais, além de ouvirmos no rádio e vermos na televisão. A maioria se acostumou. Sem falar nos programas de rádio e televisão específicos tipo "Toma, isto é para o traficante tal, a boca cheia de formiga". Coisas assim... Programas brutais que, de certa forma, criam um oba, oba. E as pessoas vão morrendo, vão caindo, vão desaparecendo...
Ontem mesmo tomamos conhecimento, está nos jornais de hoje, de que até mesmo uma autoridade, uma promotora, teria usado essas palavras: "Ah, bandido é na cadeia ou na valeta!" Na cadeia ou na valeta, ainda repetiu. O que é isto? Estamos despertando para isto, que não pode continuar. Acho que agora nós vamos fazer as famílias aparecerem. Volta e meia quando ando aí pelos bairros, tem uma pobre mãe que se agarra em meus braços e me diz: "Governador, não tenho notícias do meu filho, não sei o que foi feito do meu filho, eu sei que tem mortes lá todos os dias, que eu podia ir lá olhar, mas também não vou porque eu tenho medo. Tenho o Joãozinho, o Antoninho, o fulano, o beltrano, tenho medo que levem os outros"
O que é isto? E quantos assassinatos múltiplos desse tipo foram cometidos? Vocês se lembram daquele ali no caminho que conduz à residência de D. Eugênio? Foram sete! Sete jovens negros... Chego a perguntar: como é que podem matar sete jovens de 16, 17 e 20 anos, fortes? Quantos precisaram para agarrar, para matar? Como é que foram mortos? Será que ninguém viu, nem ouviu os tiros? Chego a pensar até na existência, como disse aqui, de uma câmara à prova de som onde matam e depois carregam para jogar por aí. E como é que podem matar sete jovens, se eles, sabendo que vão morrer, adquirem força de três? É preciso quatro, cinco para agarrar alguém que sabe que vai morrer (30-06-92)
Extermínios e seqüestros andam juntos
Permitam que diga: em minha opinião, esses seqüestros são uma atividade paralela promovida pelos integrantes dos grupos de extermínio. Para essas atividades criminosas torna-se necessária a associação, a estruturação para cometer atos. No caso da matança, é preciso seqüestrar em algum lugar, conduzir, matar, abandonar cadáveres e, sobretudo, fazê-los desaparecer. É necessária uma ação rápida, de tal modo que nenhuma criança consiga ver.
Evoluir dessa ação criminosa para o seqüestro propriamente dito, para o assalto a banco, a residências, a estabelecimentos empresariais, a carros-forte, é um simples passo. Para mim, é a mesma gente: a do seqüestro, a dos assaltos a banco, dos grupos de extermínio, esquadrões da morte, responsáveis por esta matança e também dos assaltos organizados que surgem aqui e ali contra estabelecimentos empresariais, contra empresas ou contra residências. Antigamente as polícias eram patronais e locais: com o governo Vargas e com a revolução de 30 é que a policia foi se transformando numa instituição, não dominada pelos patrões e não de natureza local e municipal. Foi adquirindo realmente uma expressão institucional. E retornar para a polícia patronal como ocorreu durante a ditadura, criando ess a quantidade imensa de serviços de segurança, ao ponto que hoje no Rio de Janeiro, existe o maior número de seguranças particulares, polícias particulares, do que integrantes das instituições policiais. E como surgiu tudo isto? Isto tudo surgiu da intenção de aniquilar as pessoas. Primeiro surgiram os grupos de extermínio. Isto vem de muito longe, e há muito tempo que se fala: eu era jovem, vinha ao Rio de Janeiro de vez em quando, morava no Rio Grande do Sul, e aqui já se falava em esquadrão da morte. Houve aquela tentativa de matar mendigos, sempre uma doutrina no sentido de eliminar – em vez de cuidar dos mendigos, em vez de cuidar dos mendigos, em vez de encarcerar os jovens delinqüentes, ou mesmo criminosos, matar! Foi esta doutrina que formou, que incentivou, que criou, que acabou desenvolvendo esta atividade criminosa. (17-07-91)
(Trechos do livro "Com a palavra Leonel Brizola" - Páginas 199-206 - Autor: Osvaldo Maneschy, Madalena Sapucaia e Paulo Becker
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