quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mensagem Cifrada!‏

Transcrevemos duas entrevistas publicadas em (O Dia e IG) , dois órgãos da "impren$a burgue$a". Um bom início para quem estiver disposto a investigar profundamente o que está por trás das mediáticas ações da polícia e as espetaculares ações dos bandidos desenroladas no mês de novembro no Estado do Rio de Janeiro!

Mas do que a velha briga entre polícia e bandido esses últimos acontecimentos envolvem o crime organizado do Palácio Guanabara, o capital privado ligado ao antigo projeto de cidade balneário, a Copa do Mundo de Futebol, as Olimpíadas e os demais eventos internacionais e a especulação imobiliária!


As forças reacionárias que a 16 anos acantonaram-se no comando da política e do governo no referido Estado enriquecem sistematicamente as custas da criminalização da pobreza e do suor de quem trabalha.


“Alguns choravam’, diz pastor que negociou rendição de traficantes”

Evangélico que acompanhou líder do AfroReggae no Complexo do Alemão defende anistia como forma de resolver confrontos no Rio

Flávia Salme, iG Rio de Janeiro | 01/12/2010 04:51 - Atualizada às 05:26

Na véspera da invasão da polícia ao Complexo do Alemão, um grupo de cinco pessoas da ONG AfroReggae decidiu subir o conjunto de 14 favelas na Penha, zona norte do Rio de Janeiro, e tentar convencer os traficantes a se entregarem. Liderados pelo diretor-executivo da organização, José Junior, eles argumentaram que a polícia venceria um possível confronto e que inocentes seriam as maiores vítimas. Ao lado de Junior estava um dos coordenadores da área social da entidade, Rogério Menezes, respeitado por traficantes, viciados e detentos do sistema penitenciário do Estado.

Evangelizador da Assembleia de Deus, Rogério é chamado de pastor. Em meio à negociação com os criminosos, no sábado (27), José Junior recorria ao Twitter para mandar informações em tempo real. "Pastor Rogério é o cara que mais salvou vidas que eu conheço. Muitas, inclusive, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão. Homem de Deus", escreveu o líder do AfroReggae na ocasião.

Ex-viciado, pastor Rogério admite que já traficou drogas, pegou em armas e cometeu crimes. Foi preso. Sobreviveu a duas overdoses de cocaína, e “foi salvo por Jesus”. Hoje, ele diz que sua vida pregressa o permite compreender o que passa pela cabeça de criminosos e apresentar argumentos para tirar muitos da marginalidade. “Já salvei uns 300 que estavam amarrados para morrer”, garante.

Sobre a ação de retomada do Complexo do Alemão pelo Estado, o pastor diz acreditar “que a intenção foi uma das melhores”. Segundo ele, “o governador tem feito um trabalho muito bom”. Contudo, o religioso defende que somente uma anistia aos traficantes será capaz de pôr fim à ameaça de guerra no Rio. “Proponho que essa decisão seja avaliada pelo governo, pelos parlamentares e pela Justiça.”

A seguir, leia mais sobre o que pensa o pastor.

iG: Às vésperas da polícia invadir a favela, no sábado (27), o senhor e o José Junior entraram no Complexo do Alemão para conversar com os traficantes. Na sua avaliação, esse gesto ajudou a evitar derramamento de sangue?

Rogério Menezes – Sim. Eu e o José Junior estávamos todo o tempo juntos. Ele virava para mim e falava “pô, Rogério, o que a gente pode fazer para ajudar?”. Eu respondia: “Junior, eu sei que é perigoso e arriscado, mas imagina se a polícia entrar? Vai morrer muita gente. Temos de ir lá”. Expliquei que o máximo que poderia acontecer era a gente ser tomado como refém. Falei: “Deus está nos mandando ir”.

iG: O que o senhor pensava naquele momento?

Rogério Menezes - Havia ali cerca de 1.500 pessoas com algum envolvimento com o crime. Se houvesse confronto, eles iriam enfrentar, como foi noticiado, 2.600 policiais civis, militares, homens do Exército e da Marinha. Sem contar os inocentes, os jornalistas, imagina o derramamento de sangue que poderia existir... Eu só pensava nisso.

iG: Como vocês chegaram até os traficantes?

Rogério Menezes – Entramos na favela e perguntamos onde eles estavam. Nos orientaram a chegar até a parte mais alta. Encontramos um grupo de cerca de 60 homens, os mais perigosos. Conversamos olho no olho.

iG: E como foi a conversa?

Rogério Menezes – Eles vieram até a gente. Estavam cansados, sem forças até para falar. Nós argumentamos que não dava para eles encararem. E muitos diziam “pastor, me ajuda. Pelo amor de Deus. O que o senhor pode fazer por mim?” O José Junior respondeu que não havia nada que a gente pudesse fazer e que o melhor seria se renderem à polícia; que a única garantia que a gente podia dar era a de que ninguém seria assassinado se aceitasse a rendição.

iG: E eles estavam inclinados a aceitar a proposta?

Rogério Menezes – Um dos chefões virou para mim e falou: “Pastor, o senhor me conhece. Sabe que a minha vida todinha eu tirei dentro da cadeia. O senhor quer que eu volte?” Respondi: “Rapaz, é melhor você se entregar do que ser morto. Você tem uma vida, tem família. Pensa muito bem no que você vai fazer.”

iG: E qual foi a reação?

Rogério Menezes – Eles estavam desesperados, amedrontados. Alguns tremiam, estavam com os olhos arregalados. Outros olhavam para a gente como se fôssemos uma saída, um porto seguro. E a gente foi tentando acalmá-los. Mas eles diziam que era complicado se entregar. Em determinadas facções, se entregar é complicado. Eu sei disso. Hoje sou pastor, mas já fui do crime. Entendo a posição deles. Mas é aquele negócio, para o homem é impossível, mas para Deus tudo é possível.

iG: Quer dizer que alguns queriam se render, mas tinham medo de ser assassinados na cadeia por retaliação da facção criminosa a que pertencem?

Rogério Menezes – É por aí. Cada caso é um caso. Depois dessa conversa que tivemos com eles, 37 se entregaram. Um se apresentou na delegacia com a mãe, a imprensa acompanhou. É o Mister M. Teve um pai que foi entregar o filho por acreditar que isso era melhor do que vê-lo morto pelo Bope. Acredito que eles não viam saída. Eu e o José Junior os motivamos a não irem para o confronto. Ninguém imaginava que o Alemão poderia ser ocupado da forma como foi. O maior mérito foi de Deus. Mas há também o mérito do AfroReggae, do José Junior, que foi muito corajoso.

iG: Qual foi o diálogo com os traficantes que mais marcou o senhor?

Rogério Menezes – Vi homens de alta periculosidade me chamar no canto e se abrir para mim e para o José Junior. Um deles chorou na nossa frente. Não de medo. Chorou porque não queria o confronto, porque temia pela vida dele, porque tinha família. Ele estava se sentindo traído por amigos que o deixaram na mão. Foi o momento que mais me compadeceu. Eu ficaria o tempo todo ao lado daquela pessoa, ainda que a polícia entrasse.

iG: Era um dos chefes do tráfico?

Rogério Menezes – Positivo.

iG: Quem falou mais, os senhores ou os traficantes?

Rogério Menezes – Eles ficaram mais tempo calados. Queriam ouvir a gente, queriam uma luz. Eles não estavam conversando com traficantes, mas com pessoas que simbolizavam a paz, a vida. Tem pessoas ali que me conhecem desde 1993, quando comecei a pregar. Muitos eu vi ir para a cadeia, sair da cadeia, visitei na favela. Havia homens com armas nas mãos, mas os que conversavam com a gente não estavam armados. Em momento algum eles diziam que iriam meter bala ou que optariam pelo confronto. Isso eu não vi.

iG: O senhor diz que muitos traficantes não querem se render porque temem retaliações de colegas de facção dentro da cadeia; outros que já ficaram muito tempo presos e não aceitam voltar. A polícia afirma que vai permanecer na favela até realizar as prisões e recuperar as armas. O senhor defende alguma proposta para que não aconteçam novos conflitos?

Rogério Menezes – Sou a favor da anistia. Converso muito com traficantes e com viciados, visito muita boca de fumo. Eu evangelizo muito. Faço um trabalho de Deus, um trabalho do bem, espiritual. Já tirei muitos dessa vida e encaminhei para um emprego. E já vi caso também de pessoas que largaram o crime, se mudaram para outro estado, mas não conseguiram emprego porque devem à Justiça. Tiveram de voltar e retornar para o crime tinham família. Mas eles me diziam “pastor, o senhor viu que tentei. Voltei para o tráfico, mas não bebo não me drogo mais, nem a baile funk eu vou. Vai acabar meu plantão na boca e vou para casa ficar com meus filhos”.

iG: O senhor não acha difícil propor para a sociedade que essas pessoas sejam anistiadas sem pagar pelos crimes que cometeram?

Rogério Menezes – É muito difícil responder sobre isso. Como religioso, acho que o culpado disso tudo são as forças espirituais do mal. Vou dar um testemunho da minha vida. Eu trabalhava, ganhava bem, três salários mínimos. Não era de uma vida errada. Mas em um determinado momento me senti sem chão. Tudo começou quando perdi meu pai. Minha mãe arrumou outro homem logo em seguida e eu não aceitei. Ela então me expulsou de casa. Eu tinha 16 anos. Bateu uma depressão tão grande, que perdi meu emprego, não conseguia trabalhar. Era morador da Baixada Fluminense, morava numa comunidade carente, conhecia bandido, conhecia traficante, mas eu era trabalhador. Nem todo mundo que mora dentro de uma comunidade é bandido. Minha família me deu estudo, o melhor que pôde dar. Mas eu caí na vida do crime, me entreguei à bebida, às drogas, fui preso. Houve momentos em que me vi sentado, chorando, querendo sair dessa. Eu despertei, procurei uma casa de recuperação. Tive apoio.

iG: Apesar da visão religiosa do senhor, a anistia não é uma proposta polêmica?

Rogério Menezes – Cada caso é um caso. Proponho que essa decisão seja avaliada pelo governo, pelos parlamentares, pela Justiça. Caso a caso, insisto. Mas, particularmente, eu acredito que num universo com 100% de criminosos, se você oferecer uma oportunidade pelo menos 40% aceitam largar essa vida. É preciso considerar que muitos temem por suas famílias. Se forem presos, quem vai sustentar suas mulheres, seus filhos? Tem que haver um projeto social também.

iG: Muitos bandidos fugiram e a polícia diz que vai capturá-los. O senhor acredita que esses traficantes vão voltar para o Complexo do Alemão futuramente? Ainda pode haver enfrentamento?

Rogério Menezes – Acredito que muitos homens que estavam ali no meio, inclusive os que fugiram, não têm antecedentes criminais. Às vezes até segura uma arma, mas é só um viciado. A polícia tem feito seu trabalho. E cabe à polícia e ao governo continuarem a fazer o seu trabalho. Contudo, também acredito que aquilo ali foi a mão de Deus a fim de despertar esses jovens. Acredito que muitos vão analisar e ver que não vale a pena se envolver com o crime. É a resposta que posso dar para essa pergunta.

iG: O senhor está certo da recuperação dessas pessoas?

Rogério Menezes – Vou dar um exemplo. Trabalha com a gente lá no AfroReggae o Gaúcho. Durante muitos anos ele foi o chefe do Alemão, era um dos mais temidos na área. Ele tirou 28 anos de cadeia e hoje está aí, fora do crime, trabalhando com carteira assinada. Isso é a prova de que enquanto há vida, há esperança. O Bem-te-vi, aquele que morreu na Rocinha, ele vivia me dizendo que queria sair do crime. Eu ia para lá pregar umas sete da noite e ele não me deixava ir embora antes das três, quatro horas da manhã. Ele tinha o prazer de estar do meu lado. Muitas vezes o vi chorar. Ele me dizia “pastor, me ajuda. Quero sair dessa vida, mas não tenho forças. A sociedade me marginaliza, não acredita em mim”. Eu dizia, “rapaz, o mais importante é Deus estar olhando para você. Deus tem um plano para sua vida. Você não pode se entregar à criminalidade”.

iG: Por que evangélicos são tão respeitados pelos criminosos?

Rogério Menezes – No sábado, na hora em que a polícia se posicionou para invadir o Complexo do Alemão, tinha um pastor na entrada da favela de terno e com a Bíblia na mão. Estava ele e a mulher dele. Aliás, havia mais de um, eram muitos. Eles ficaram entre os militares da polícia, do Exército e da Marinha, e os jovens. E eles procuravam esses jovens e diziam para que saíssem dessa vida. Ofereciam apoio: “quer se entregar comigo?”, perguntavam. No momento mais difícil, havendo risco de vida, eles estavam ali. E tem os testemunhos daqueles que saíram do crime e hoje estão aí, vivendo com dignidade. Isso mostra para eles que é possível.

José Junior: ‘Foi a primeira vez em que mediei sendo um alvo’

Rio - De peito aberto para a paz. Há 10 anos na linha de frente em negociações com os traficantes mais temidos das favelas mais violentas do Rio, o coordenador executivo do AfroReggae, José Junior, se viu pela primeira vez do outro lado do front. Mesmo ameaçado de morte por traficantes do Alemão, ele foi até lá no sábado e acabou tentando mediar a rendição do próprio bando que o havia jurado de morte. “Pedi que se entregassem à polícia, não a mim”, contou ele em sua primeira entrevista após a ameaça. “O risco de um mediador ameaçado é kamikaze”. Aqui, ele também revela detalhes da negociação no Alemão. ODIA: O que levou você, sábado, ao Complexo do Alemão? Foi um pedido de alguém ou iniciativa sua? JOSÉ JUNIOR: Já frequento o Complexo do Alemão há nove anos. Temos um núcleo do AfroReggae lá e, inclusive, foi a favela em que fizemos mais eventos. Mesmo estando em Vigário Geral e Parada de Lucas há mais tempo, é a favela que mais frequento, até por causa dos problemas do Alemão. O Rogério (pastor mediador de conflitos e coordenador do Sinal de Mudanças, projeto do AfroReggae em presídios) foi quem me convenceu e insistiu muito para eu ir. Também recebi pedidos de moradores e uma ligação na sexta-feira de um dos líderes do tráfico que estava reunido com os outros. Perguntei qual era a intenção dele, e ele pediu para eu ir lá, queria me ver. Queria saber se havia possibilidade de não haver matança. Eu sugeri que eles se rendessem. Mas em momento algum eu disse para se renderem a mim. Eu seria irresponsável se fizesse isso. Fui por preocupação com os moradores. Mas seria leviano se eu não dissesse também que não fiquei preocupado com os policiais e traficantes. Não queria que os traficantes morressem. Seria um discurso muito bonito dizer: fui por causa dos moradores. Fui por causa de todo mundo. Quando passei lá, me aplaudiram.

O que você viu quando chegou lá?

Parecia uma favela fantasma. Sábado é o dia mais movimentado do Alemão. Havia algumas lideranças, umas 40 pessoas armadas mas completamente desestruturadas, principalmente, emocionalmente. Estavam desestimulados, desesperançosos para o confronto porque realmente o estado se organizou de forma que sabiam não ter possibilidade de reação. Sempre que entro nas comunidades, tem um que fala ‘vou mandar bala mesmo. Vamos morrer juntos’. Não vi nada disso. Não tinha marra. Tinha medo, sim. Na hora, por mais que os reacionários não gostem do que vou falar, vi traficante chorando, com medo. Lá não tem 600 bandidos. Ali tem muito moleque, muita criança. Tem cara que não tem nem passagem (pela polícia).


O que eles disseram quando você sugeriu que se entregassem?

Perguntaram se não tinha outro caminho. Se não tinha como selar a paz, que largariam o crime mas iriam embora, fugiriam. Acho que ajudamos de certa forma porque fomos as únicas pessoas comuns que falaram com eles olho no olho. Acho que, talvez, se não fosse isso esse domingo também não seria como foi.


Queriam um acordo?

Queriam. Mas não me sujeito a fazer esse tipo de acordo. Eu disse: ‘O único acordo que o estado iria aceitar era eles se renderem e entregarem as armas, porque o que vocês fizeram foi uma coisa que chocou não só o Rio, mas o mundo todo’. Mas eu não queria ter ido ao Alemão.


Por que não?

Eu estava chateado porque há mais ou menos 40 dias foi descoberta uma carta, a mesma carta que gerou esses ataques, com uma parte que manda matar uma pessoa do AfroReggae e essa pessoa sou eu. Fiquei muito chateado. Por mais que soubesse que não seria autorizada a minha execução, fiquei chateado. Não posso dizer que a facção me desrespeitou, mas duas pessoas, sim, porque sabem que não sou envolvido com nada. Não é a primeira e nem será a última vez que eu recebo algum tipo de ameaça. Recebi em 2000, ano passado depois da morte do Evandro (coordenador de projetos sociais do AfroReggae morto em assalto no Centro). Sempre recebo recomendações do tipo ‘muda de carro, de casa’, ‘deixe de fazer certas coisas’. Uma das coisas que me pedem é não entrar em favela. Se eu parar de freqüentar favela, tenho que mudar de profissão, mudar a missão do AfroReggae.


O que diz a carta?

Que a gente entra nos presídios e convence as pessoas a largarem o crime, que eu fico sabendo das coisas e atrapalho. Realmente tiramos muitas pessoas do crime. Quando comecei tirava crianças do tráfico hoje tiro ex-donos de bocas de fumo, homens de 50 anos. Mediei muitos conflitos com ajuda do Rogério. Não quero levar o crédito sozinho. Por exemplo, esses ataques poderiam ter acontecido ano passado e ao longo desse ano mas não aconteceram nem vazaram porque mediamos e essas coisas causaram certos incômodos. A única mentira que está na carta é que a gente passa informação. Eu não sei quando chega carregamento de drogas, entrega de armas, nem quero saber. Nunca me interessou. Não faço esse negócio de leva e traz.


Você sabe quem foi o autor da ameaça?

Descobri com a ajuda da polícia, traficantes, ex-traficantes e de pessoas que gostam de mim e que entendem da narcocultura.


Ontem (sábado) quando você foi ao Alemão, essa pessoa estava lá?

Estava, falei com ele, que me pediu ajuda e eu disse que ajudaria se eles se entregassem. Ele negou a ameaça, claro. Mas tive a oportunidade de falar com todo mundo e isso me fez muito bem. Falei com o último ontem (sábado). Não senti o menor medo, de nada. Eu sabia que não ia acontecer nada. A pessoa que mandou a carta sempre colaborou muito e me ajudou a mediar. Para ser mediador é preciso ter a simpatia do crime e ele é uma das pessoas mais simpáticas. Se é traficante pode ter bom comportamento, ele tinha comportamento exemplar. É uma pessoa encarada até pela polícia como, entre os piores, o menos pior. Nem posso dizer que me senti traído porque esses caras não têm fidelidade a ninguém. É que a ameaça poderia ser de várias pessoas que o impacto seria outros. Vindo dele, o impacto foi muito forte. Nos últimos anos tentei tirá-lo do crime várias vezes.


Você diz que não teve medo ao se encontrar com os criminosos que o ameaçaram e que sabia que nada aconteceria a você. Qual era a garantia disso? Que tipo de sensação você teve?

Foi a primeira vez que mediei um conflito sendo o próprio alvo. Senti uma coisa estranha. E ontem (sábado) tive muitas dúvidas. Quando comecei com esse trabalho eu não tinha nada a perder. Hoje tenho família. Algumas pessoas quase me pressionavam a ir, outras não queriam que eu fosse, uma delas foi o governador (Sergio Cabral) porque ele sabia da carta. Falavam que eu seria moeda de troca ou poderia virar refém. Quem me deu um certo conforto para ir foi o Rogério. Ele dizia que Deus tem um trabalho para mim, que ele (Deus) queria eu fosse. Várias vezes disse para ele que não iria. O risco do mediador é altíssimo. De quem foi ameaçado é quase kamikaze.


Vocês fazem essas mediações por livre e espontânea vontade? Ontem (sábado) sim, mas na maioria das vezes somos convidados. O AfroReggae vai fazer 18 anos em janeiro e mediação de guerra fazemos há 10. Muitos dos traficantes com quem conversei não eram a favor dos ataques. Acho que há um cansaço muito grande da criminalidade com o que vem acontecendo no Rio. Se você perceber, muitos que atacaram são viciados em crack, não são bandidos.


Autoridades dizem que os ataques anteriores à ocupação foram reação à política das UPPs. O que você acha?

UPP é uma das motivações ou a principal, mas não posso afirmar que seja só isso, até porque nos últimos dias me coloquei à disposição para mediar. Mas, após a carta, há 30 dias não conversava com essas pessoas.


Qual a sua avaliação da ocupação do Alemão?

Até agora positiva. A grande maioria não queria banho de sangue. Recebi nove mil mensagens, a grande maioria positivas. Bandidos têm que ser presos, até os que me ameaçaram. Eu poderia ter todo interesse em que esses caras morressem. Poderia colocá-los na bola da vez — e não com o governo, mas com a própria facção. Mas não quero o mal de ninguém. A única pessoa que achei que realmente fosse me matar hoje está no AfroReggae. Isso foi em 2004. O governo já está investindo no Alemão com o PAC. Os imóveis vão valorizar. O teleférico que seria ligado ao trem será também ao metrô.

Reportagem de Ana Cristina Miguez e Maria Inez Magalhães

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